Resenha - Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto

Em busca do verdadeiro Nacionalismo

Edição de Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, publicada pelo selo Penguin-Companhia, da editora Companhia das Letras

A obra Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, publicada, originalmente, em folhetins pelo Jornal do Commercio, em 1911, e, posteriormente, num volume único por uma editora, em 1916, veio a público num período dominado por revoluções sociais, culturais, políticas e econômicas promovidas não apenas nos territórios europeu e norte-americano, como também em terras brasileiras, então recém-firmadas sob o signo da República. Considerado a obra-prima de Lima Barreto, o romance em questão retratou e criticou, ao mesmo tempo, as novas e as velhas circunstâncias em meio às quais o país então se orientava e os ideais de nacionalismo que guiavam seu povo. 

Instituído segundo três partes, simetricamente dotadas, cada qual, de cinco capítulos, devotados ao desenvolvimento de determinadas temáticas relativas ao Brasil e à identidade nacional, estabeleceu-se Triste fim de Policarpo Quaresma, protagonizado por Policarpo Quaresma, carioca patriótico, grande estudioso dos costumes, da Literatura e da História brasileira. Vale ressaltar que, logo no início da trama, percebe-se ser a instrução do personagem central fundamentada única e exclusivamente nos documentos históricos nacionais, dominados pelo mito ufanista (relativo ao orgulho nacional) e pelas ideias nativistas dos colonizadores do Brasil, e nas obras literárias do Romantismo, de que se destacam autores como Gonçalves Dias e José de Alencar, invariavelmente orientadas pelas concepções dos primeiros exploradores e pela busca, com base nessas, da identidade nacional, associada à figura do indígena nativo. Tal e qual um religioso pautado pelas Escrituras Sagradas como guia para a construção de uma vida digna e significativa, molda o protagonista os sentimentos, os ideais e as teses que manifesta consoante os conceitos de nacionalismo por ele estudados, estruturando, assim, projetos especiais nesses embasados.

Em termos de relevância no panorama literário nacional, a obra-prima de Lima Barreto não apenas permite ao leitor conhecer o contexto sócio-político-cultural dos primeiros anos da República Brasileira – visto que a trama desenvolve-se entre os anos de 1891 e 1894 – e, evidentemente, as características do Pré-Modernismo - que se consolidariam, anos mais tarde, mediante o Movimento Modernista -, mas, sobretudo, a crítica que faz o autor ao modo pelo qual se institui o regime republicano no território então recém-independente, de fato, do domínio português e à noção de nacionalismo, inerente à concepção de Brasil estabelecida pela antiga metrópole.

Na primeira parte do romance, o personagem Policarpo, após se sujeitar, ao longo de mais de três décadas, a rituais de estudo e de meditação acerca do valor de sua pátria, decide partir para a ação e contribuir para o firmamento dos ideais nacionalistas por ele adquiridos, nesse meio-tempo. Logo, o protagonista constrói seu primeiro projeto de levantamento moral e social da nação, pautado pela disseminação da cultura originária do país, isto é, pelos valores e pelos costumes dos povos indígenas. Quaresma defende, pois, a ideia de que o tupi deve firmar-se como a língua oficial do povo brasileiro, o que o conduz a solicitar, por meio de um requerimento ao Governo Federal, a implantação desse idioma no país, de maneira a facilitar a comunicação e a percepção de mundo de seus habitantes, não mais obrigados a subjugar-se a uma língua oriunda de uma comunidade estrangeira, antiga opressora das terras sul-americanas.

Evidentemente, o chamado projeto cultural ou linguístico de Policarpo Quaresma fracassa e, como consequência de seu requerimento, o personagem vê-se ridicularizado pelos habitantes e pela imprensa de sua cidade, caindo numa grave crise nervosa. Lima Barreto cria, assim, sua primeira grande crítica à formação da nação brasileira, baseada na figura do indígena e de suas manifestações linguísticas e culturais como representantes da essência de seu povo, crença alimentada pelos relatos históricos do descobrimento do país e, sobretudo, pelos princípios defendidos pelo Romantismo. A primeira discussão do ideário nacionalista, acompanhada de muito bom-humor e de pitadas de sarcasmo, evidencia, pois, a crença do autor do livro na necessidade de se repensar e reestruturar-se o nacionalismo vigente, desde que pouco condizente com a realidade do país e de suas constituições social e cultural.

Desejoso de promover uma verdadeira reforma agrária no Brasil, Policarpo Quaresma desenvolve  inaugurando, então, a segunda parte do romance seu precioso projeto agrícola, ancorado nas arcaicas noções nativistas dos primeiros exploradores portugueses. Mais uma vez, contudo, seus planos são frustrados, vitimados, desta vez, por uma série de fatores, desde materiais – como a invasão de sua plantação por formigas e a peste que mata seus animais – até políticos – tais como as altas taxas de impostos que o governo local impõe-lhe. Ameaçado, principalmente, pelas imposições fiscais e pelos baixos preços de mercado dos gêneros que cultiva, o patriota Quaresma decide abandonar seu segundo plano nacionalista e investir num terceiro, o político, que logo lhe é sugerido.


Com efeito, o que Lima Barreto propõe na segunda fase de sua obra não apenas se limita a uma profunda crítica às noções de terra brasileira assumidas pelo imaginário coletivo  invariavelmente orientado pela crença primitiva de que o solo do país sempre se evidenciou como um dos mais férteis do mundo, a ponto de deter a capacidade de desenvolver inúmeras espécies de flora , como também expõe uma denúncia mordaz à profunda falta de incentivo agrícola da parte do governo àqueles que se dispõem a viver da terra. Isso porque, mesmo em meio a ambientes com altas potencialidades para a agricultura, o Estado não fornece investimento financeiro aos cultivadores, que se veem desprovidos de capital e, assim, dos recursos materiais essenciais para a constituição e a manutenção de uma lavoura. Além disso, conforme se ressalta na trama, embora o mercado pouco valorize os gêneros produzidos, pagando por eles míseras quantias, o governo por eles cobra altas taxas, impondo, ainda, medidas descabidas aos proprietários de terras, sob a pena de multas de valor exorbitante para o não cumprimento do solicitado.

Por meio da adesão de Quaresma à II Revolta da Armada, ocorrida entre 1893 e 1894, quando o personagem atua num batalhão patriótico, ou seja, em favor das tropas do presidente, marechal Floriano Peixoto, Lima Barreto consolida os debates previamente realizados em sua trama, inaugurando a terceira e derradeira parte da obra. Tem-se, novamente, a frustração do protagonista, que se depara com uma série de injustiças e de crueldades na guerra de que participa, sofrendo uma redução drástica de seu amor patriótico e, logo, a desestruturação das esperanças que depositava no levantamento da nação. Por fim, seu desapontamento é “coroado” por sua injusta prisão e por sua condenação à morte, oriunda tão somente de sua bondade para com os presos políticos.


O autor constitui, na última fase de sua obra, uma relevante sátira aos líderes republicanos e à própria figura da República, apresentados não como sinônimos de “igualdade, liberdade e fraternidade”, mas de tortura, crueldade e assassinato. Focado no personagem de Floriano Peixoto, Barreto retrata o líder governamental tal e qual um homem marcado pela “tibieza de ânimo” e pela “preguiça”, cuja falta de força de vontade reflete a indolência e o descaso de todo brasileiro e, por isso, a negligência deste em relação a seus costumes, à sua História e a seu nacionalismo. Tal ideia ganha realce, quando se faz uma descrição da reação dos cariocas diante da Revolta, que, para eles, evidencia-se como uma festa, a que assistem do Passeio Público da cidade, e de que colecionam balas de armamentos, empregando-as como meros enfeites pessoais. Lima Barreto promove, sobretudo, uma crítica à profunda crueldade e à falta de senso moral do brasileiro ante seus semelhantes, o que pode exemplificar-se pela prisão do protagonista e pela consequente destruição de seus sonhos patrióticos.

Há, no entanto, uma esperança, evidenciada como a maior e mais significativa mensagem do livro: a da reinvenção da nação brasileira, com base no abandono das antigas ideias estruturadas pelos colonizadores e pelos românticos, dando lugar a uma concepção realista do Brasil, proveniente das lições obtidas pelas frustrações subsequentes de Quaresma em seus planos, lições apreendidas, sem dúvida, por Olga e por Ricardo Coração dos Outros, grandes amigos de Policarpo e os únicos personagens do romance que, tal qual o protagonista, interessam-se pelo coletivo, pela nação e por sua constituição. As críticas explanadas também evidenciam a manutenção, nos dias atuais, da realidade no romance apresentada, o que torna a leitura de Policarpo Quaresma imprescindível na modernidade. Afinal, a visão ufanista idealizada pelo brasileiro perdura, impedindo que se crie uma real noção de seu país e que se possa, assim, promover desde reformas agrícolas até o estabelecimento de um governo justo, preocupado, de fato, em promover a igualdade, a distribuição de renda e o combate à corrupção e à burocracia. A ideia de que o brasileiro é o mestiço e de que sua cultura origina-se, portanto, da mistura de raças deve ser o foco das crenças e da cultura nacional, a substituir os conceitos tradicionais dos exploradores portugueses e estrangeiros, consolidando, portanto, a identidade nacional, acompanhada das devidas reformas promovidas nas áreas social, política e econômica.

Triste fim de Policarpo Quaresma desperta-nos, a todos nós, brasileiros, para uma profunda conscientização da nação brasileira de nossa própria época, quase idêntica em costumes e em sociedade a da época de Quaresma, e deve, pois, servir-nos de aprendizagem de nossos reais valores, conforme ocorre com os personagens de Olga e de Ricardo Coração dos Outros, mesmo que nós, no presente momento, não possamos promover mudanças de grande significação no país. Afinal, o pouco que cada fizer deverá, em comunhão e em longo prazo, constituir-se como uma grande contribuição e, assim, promover a reestruturação do conceito de nação e de sua importância para a identidade nacional.


 Karen Monteiro

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