Resenha - A Princesinha, de Frances Hodgson Burnett

A Princesinha ou os infortúnios inconsistentes e melodramáticos de uma menina afetada e irreal 

Para a maioria dos cidadãos europeus da virada do século XIX para o XX, quando o Imperialismo fortalecia a política e enriquecia a economia do Velho Continente, pouco poderia enlevar mais a alma do que servir no exterior sua nação, de sorte a assomar-lhe glórias e a garantir prestígio pessoal. Não deveria haver, pois, muitos homens como o Capitão Crewe, oficial subordinado à Coroa Britânica na Índia, cujo maior orgulho nenhum vínculo detinha com acúmulo de riquezas ou com status social, mas somente com uma genuína e profunda afeição por alguém que, se não fosse, a seus olhos, particularmente especial, teria sido, sem demora, preterido pelo promissor empreendimento no Oriente. Por isso, nada, salvo um doloroso desamparo, tomou conta do coração do militar inglês, quando, de volta a seu país natal, viu-se obrigado a deixar sua querida filha numa escola londrina para meninas, a fim de que nela recebesse a devida preparação para, no futuro, integrar-se à sociedade como a mais perfeita dama de sua época.

Saída do quente e ensolarado território indiano, no qual tinha vivido, desde que nascera, em meio a incontáveis mimos e a numerosos luxos, e separada, pela primeira vez em sua existência, da companhia do adorado pai, outros comportamentos, que não fossem a arrogância e a rebeldia, não se deveriam esperar, da parte de Sara Crewe. Esta, contudo, não poderia ter revelado uma personalidade mais destoante das expectativas alimentadas a sua volta: ponderada, bem-educada e gentil, a filhinha do Capitão despertou, em pouco tempo, não só a simpatia eterna de algumas de suas colegas no educandário, como também a inveja amarga de outras e, sobretudo, o ódio velado da diretora, a austera Srta. Minchin. Apesar das opiniões divergentes acerca da peculiar aluna nova, todos, entretanto, concordavam, mesmo que não o admitissem, ter sido ela abençoada com uma prodigiosa inteligência, que, combinada a uma fértil imaginação, permitia-lhe conceber todo um mundo de “faz de conta”, em que as histórias que narrava às amiguinhas do colégio destacavam-se.

Cerca de quatro anos haviam se passado, desde que Sara iniciara seus estudos, quando, numa certa ocasião, ela recebeu de seu pai uma carta, na qual ele contava ter sido convidado por um velho amigo a formar sociedade na exploração de minas de diamantes. Jamais perpetrara as paredes da escola uma novidade tão emocionante, de maneira que aqueles que cercavam a Srta. Crewe começaram sem demora a chamá-la de “Princesa Sara”, fazendo jus tanto a sua conduta invariavelmente digna como a sua posição eminente. O sonho, todavia, esvaiu-se num instante, no dia em que, ao completar seu décimo primeiro aniversário, a peculiar criança defrontou-se com a pior notícia de sua vida: falido, seu amado pai caíra doente e logo falecera. Rápido a desgraça abateu-se sobre a menina, de cuja situação miserável aproveitou-se a Srta. Minchin, destituindo-a de seu direito à educação e obrigando-a a trabalhar arduamente a fim de sustentar-se à míngua. Por dois longos anos, a garota assim viveu, embora permanecessem indestrutíveis suas verdadeiras amizades e inabaláveis seus alentadores “faz de conta” – de que fingir ser uma princesa de modo a portar-se sempre com decência era o mais usual -, quando por acaso instalou-se, na casa vizinha, o amigo de seu pai, que, atormentado, tentava descobrir o paradeiro de Sara. Após ajudá-la e confortá-la, em sua situação deplorável, sem sequer conhecer sua real identidade, o vizinho inteirou-se da história da pequena gata borralheira e restituiu-lhe a fortuna, que, afinal, não se perdera, mas, sim, multiplicara-se com os diamantes. Um conto de fadas não poderia ser mais fantástico.

Concebida originalmente para um conto que integraria edições de 1887 e de 1888 da revista norte-americana St. Nicholas Magazine, a trama de A Princesinha (A Little Princess, no original) foi transformada em romance pela já famosa escritora inglesa Frances Hodgson Burnett somente nos primeiros anos do século XX. Depois de seu lançamento nos EUA, em 1905, a obra não tardou a tornar-se um best-seller mundial, que, consagrado na literatura infantojuvenil, reproduziu-se, nas telas de cinema, várias vezes, ao longo das décadas, sendo o filme de 1995 dirigido por Alfonso Cuarón com Liesel Mattews no papel principal a mais recente adaptação. Não se deve ignorar, porém, que, conquanto se possa ter feito jus à história de Sara Crewe ao considerá-la sinônimo de algumas das mais elevadas virtudes, tais qual o bom senso, a compaixão e a generosidade, pouco se ter concedido atenção às muitas imperfeições do livro ao atribuírem-se-lhe predicados excessivos, o que implica, pois, a necessidade de reexaminar-se sua conjuntura e de reavaliarem-se seus méritos.

Nota-se, com efeito, que o texto de Burnett encerra um preponderante viés romântico herdado dos escritos das irmãs Brontë, principalmente dos de Charlotte, autora do aclamado Jane Eyre. Conforme o Romantismo apropriado pelos mais convencionais enredos de telenovelas, no entanto, A Princesinha apresenta erros de composição e inverossimilhanças na ação, que comprometem a narrativa, empobrecendo a integralidade de seu conteúdo e a credibilidade de sua mensagem. Por sua vez, as incoerências e os absurdos que lhe são inerentes diminuem seu valor ante os leitores jovens, cuja capacidade intelectual está, sem dúvida, acima das trivialidades da obra. O primeiro diz respeito à paixão da protagonista pelo mundo da imaginação. Ao travar conhecimento com Ermengarde Saint-John, que viria a ser uma de suas melhores amigas no educandário, Sara revelou-lhe que possuía um quarto de brincar exclusivo, onde podia inventar seus contos de fadas sem perturbações externas, uma vez que “estragava tudo” pensar que alguém a estivesse escutando. Instantes depois dessa declaração, contudo, a garota não se eximiu de expor à nova coleguinha diversas fantasias por ela previamente concebidas, comportamento que, no decorrer da trama, repetir-se-ia e devotar-se-ia a grupos de ouvintes cada vez mais amplos. Com base nesse quadro, poder-se-ia argumentar que, embora preferisse conceber a sós seus “faz de conta”, a Srta. Crewe gostava de transmiti-los a outros, desde que já estivessem concluídos. Muitas das cenas em que se dedicava a encantar o colégio com os voos da imaginação explicitam, porém, sua habilidade peculiar e sua inclinação especial para a criação espontânea e pública de histórias fantásticas. Constata-se, por conseguinte, uma contradição na abordagem de um dos traços mais relevantes da personalidade da figura central do romance.

Outra incoerência proeminente no desenvolvimento de um personagem estabelece-se com relação à caçula da escola de Srta. Minchin, tratada como se fosse uma eterna criancinha de quatro anos de idade, ainda que seis anos tivessem transcorrido do início ao fim do enredo. Muito bem exemplifica essa questão o episódio da trágica festa do décimo primeiro aniversário de Sara, quando se comentou que uma suntuosa boneca ganhada pela menina era quase do tamanho de Lottie Legh, que já contava, então, com sete anos de idade. Há, ainda, o caso de Ram Dass, criado indiano do ex-companheiro do pai da protagonista, que, ao conversar com esta, pela primeira vez, alegrara-se por saber que a garota era fluente em hindustâni, a única língua que ele falava. Foi estranho, pois, deparar-se mais tarde com a cena em que tal servo comunicava-se perfeitamente bem com Becky, uma das empregadas do educandário, que certamente não conhecia outro idioma, salvo o inglês.

Nenhuma das caracterizações incompetentes de A Princesinha, todavia, irrita mais do que a composição da personagem central, que, apesar de ser, excetuando-se, é claro, o episódio supracitado, adequada à lógica interna da obra, devido a sua base romântica, pouco corresponde à lógica que lhe é externa, isto é, o mundo real. Sara revela-se, com efeito, agraciada quase exclusivamente por qualidades positivas, que a fazem não só muito bondosa, generosa e educada com todos, como também extremamente inteligente – tendo sido a aluna modelo de disciplinas que iam de Dança a Francês – e profundamente sensata – tendo se mantido tranquila e ponderada em situações que seriam insuportáveis para qualquer criança de carne e osso. Poucos foram os momentos em que a garota exibiu perda de controle, que ela recuperou, sem dúvida, de forma tão rápida e tão equilibrada que pareceu afetada, sem equivalência alguma com a realidade. Em outras palavras, como diria Jane Austen, “retratos de perfeição deixam-me má e doente”.

Segundo a mesma linha de incoerência frente à vida real, institui-se grande parte da ação do romance, quando, pautada pelo melodrama, típico do Romantismo, vale-se dos infortúnios da protagonista em meio à pobreza para afirmar a integridade de seus princípios e a firmeza de seu caráter. Embora o artifício da miséria, tal e qual a natureza quase divina da “Princesa Sara”, integra a lógica interior da narrativa, o fato de seu fundamento não ser verídico – visto que, como se diz, conhece-se alguém somente quando se lhe dá poder -, torna-o piegas e enfadonho, além de pouco crível com relação à própria Sara, que, mesmo em seus áureos tempos, já era boa e generosa com todo mundo. Todavia, compromete-se, de fato, tanto o mundo não fictício como o criado por Burnett, na ocasião em que, durante uma conversa entre o velho amigo do Capitão Crewe e seu advogado, ambos inadvertidamente ignoraram a ideia de que era, no mínimo, estranho haver, na casa ao lado, uma criança que, apesar de desprovida de recursos e de acesso à educação, mostrava-se polida e culta feito uma jovem dama da sociedade. Embora o desfecho da trama permita compreender que esse cenário assim se concebeu a fim de que, afinal, pudessem estabelecer-se certas coincidências como pretexto para unir o cavalheiro indiano à menina que ele sonhava encontrar, a presença de tamanha inverossimilhança na obra não só diminui seu valor literário, mas também afronta a inteligência do leitor, independente de sua idade.

Ainda que se proponha como lição de bom senso e de compaixão, esta ressaltada sobretudo na cena em que, faminta, Sara não se abstém de compartilhar seu alimento com uma mendiga, e aquela destacada nas situações em que a garota mantém-se calma e educada ante os maus-tratos da Srta. Minchin, conclui-se, de acordo com o panorama acima discutido, ser A Princesinha mais repleto de defeitos do que de virtudes. Portanto, se o que se deseja relaciona-se à aprendizagem ou ao aprimoramento das qualidades exaltadas no livro, pode-se, a não ser que os elementos românticos sejam verdadeiramente apreciados, substituir sua leitura pela de uma obra de teor mais realista e, por isso, mais condizente com a vida do dia a dia. Jane Austen, nesse sentido, seria, de novo, uma boa conselheira, principalmente com seu Razão e Sensibilidade.


 – Karen Monteiro

Comentários

  1. Oi, Karen! Adorei o seu blog e suas resenhas, adicionei A Princesinha em minha lista.
    Abraço ♥

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Karyne! Tudo bem?

      Fico muito contente por ter gostado do conteúdo de meu blog! Sinta-se à vontade para visitar a página sempre que desejar.

      Um abraço!

      Excluir
  2. gostei muito da contextualização histórica e análise do enredo, não sei se vc continua alimentando o Blog, mas ele foi muito útil em minhas pesquisas, brigada querida!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Rebeca! Tudo bem?

      Que bom que gostou de minha resenha sobre A Princesinha! 😊 A respeito do blog, eu ainda o atualizo, tendo feito ontem minha última postagem. Fique à vontade para aparecer por aqui sempre que desejar.

      Um abraço!

      Excluir

Postar um comentário