A Princesinha ou os infortúnios inconsistentes e melodramáticos de uma menina afetada e irreal
Para a maioria dos cidadãos
europeus da virada do século XIX para o XX, quando o Imperialismo fortalecia a
política e enriquecia a economia do Velho Continente, pouco poderia enlevar
mais a alma do que servir no exterior sua nação, de sorte a assomar-lhe glórias
e a garantir prestígio pessoal. Não deveria haver, pois, muitos homens como o
Capitão Crewe, oficial subordinado à Coroa Britânica na Índia, cujo maior
orgulho nenhum vínculo detinha com acúmulo de riquezas ou com status social,
mas somente com uma genuína e profunda afeição por alguém que, se não fosse, a
seus olhos, particularmente especial, teria sido, sem demora, preterido pelo
promissor empreendimento no Oriente. Por isso, nada, salvo um doloroso
desamparo, tomou conta do coração do militar inglês, quando, de volta a seu
país natal, viu-se obrigado a deixar sua querida filha numa escola londrina
para meninas, a fim de que nela recebesse a devida preparação para, no futuro, integrar-se à sociedade como a mais perfeita dama de sua época.
Saída do quente e ensolarado
território indiano, no qual tinha vivido, desde que nascera, em meio a
incontáveis mimos e a numerosos luxos, e separada, pela primeira vez em sua
existência, da companhia do adorado pai, outros comportamentos, que não fossem a
arrogância e a rebeldia, não se deveriam esperar, da parte de Sara Crewe. Esta,
contudo, não poderia ter revelado uma personalidade mais destoante das
expectativas alimentadas a sua volta: ponderada, bem-educada e gentil, a
filhinha do Capitão despertou, em pouco tempo, não só a simpatia eterna de
algumas de suas colegas no educandário, como também a inveja amarga de outras
e, sobretudo, o ódio velado da diretora, a austera Srta. Minchin. Apesar das
opiniões divergentes acerca da peculiar aluna nova, todos, entretanto,
concordavam, mesmo que não o admitissem, ter sido ela abençoada com uma
prodigiosa inteligência, que, combinada a uma fértil imaginação, permitia-lhe
conceber todo um mundo de “faz de conta”, em que as histórias que narrava às
amiguinhas do colégio destacavam-se.
Cerca de quatro anos haviam se
passado, desde que Sara iniciara seus estudos, quando, numa certa ocasião, ela
recebeu de seu pai uma carta, na qual ele contava ter sido convidado por um
velho amigo a formar sociedade na exploração de minas de diamantes. Jamais
perpetrara as paredes da escola uma novidade tão emocionante, de maneira que
aqueles que cercavam a Srta. Crewe começaram sem demora a chamá-la de “Princesa
Sara”, fazendo jus tanto a sua conduta invariavelmente digna como a sua posição
eminente. O sonho, todavia, esvaiu-se num instante, no dia em que, ao completar
seu décimo primeiro aniversário, a peculiar criança defrontou-se com a pior
notícia de sua vida: falido, seu amado pai caíra doente e logo falecera. Rápido
a desgraça abateu-se sobre a menina, de cuja situação miserável aproveitou-se a
Srta. Minchin, destituindo-a de seu direito à educação e obrigando-a a
trabalhar arduamente a fim de sustentar-se à míngua. Por dois longos anos, a
garota assim viveu, embora permanecessem indestrutíveis suas verdadeiras
amizades e inabaláveis seus alentadores “faz de conta” – de que fingir ser uma
princesa de modo a portar-se sempre com decência era o mais usual -, quando por
acaso instalou-se, na casa vizinha, o amigo de seu pai, que, atormentado,
tentava descobrir o paradeiro de Sara. Após ajudá-la e confortá-la, em sua
situação deplorável, sem sequer conhecer sua real identidade, o vizinho
inteirou-se da história da pequena gata borralheira e restituiu-lhe a fortuna,
que, afinal, não se perdera, mas, sim, multiplicara-se com os diamantes. Um
conto de fadas não poderia ser mais fantástico.
Concebida originalmente para um
conto que integraria edições de 1887 e de 1888 da revista norte-americana St. Nicholas Magazine, a trama de A Princesinha (A Little Princess, no original) foi transformada em romance pela já
famosa escritora inglesa Frances Hodgson Burnett somente nos primeiros anos do
século XX. Depois de seu lançamento nos EUA, em 1905, a obra não tardou a
tornar-se um best-seller mundial, que, consagrado na literatura infantojuvenil,
reproduziu-se, nas telas de cinema, várias vezes, ao longo das décadas, sendo o
filme de 1995 dirigido por Alfonso Cuarón com Liesel Mattews no papel principal
a mais recente adaptação. Não se deve ignorar, porém, que, conquanto se possa ter
feito jus à história de Sara Crewe ao considerá-la sinônimo de algumas das mais
elevadas virtudes, tais qual o bom senso, a compaixão e a generosidade, pouco
se ter concedido atenção às muitas imperfeições do livro ao atribuírem-se-lhe
predicados excessivos, o que implica, pois, a necessidade de reexaminar-se sua
conjuntura e de reavaliarem-se seus méritos.
Nota-se, com efeito, que o texto
de Burnett encerra um preponderante viés romântico herdado dos escritos das
irmãs Brontë, principalmente dos de Charlotte, autora do aclamado Jane Eyre. Conforme o Romantismo
apropriado pelos mais convencionais enredos de telenovelas, no entanto, A Princesinha apresenta erros de
composição e inverossimilhanças na ação, que comprometem a narrativa,
empobrecendo a integralidade de seu conteúdo e a credibilidade de sua mensagem.
Por sua vez, as incoerências e os absurdos que lhe são inerentes diminuem seu
valor ante os leitores jovens, cuja capacidade intelectual está, sem dúvida,
acima das trivialidades da obra. O primeiro diz respeito à paixão da
protagonista pelo mundo da imaginação. Ao travar conhecimento com Ermengarde
Saint-John, que viria a ser uma de suas melhores amigas no educandário, Sara
revelou-lhe que possuía um quarto de brincar exclusivo, onde podia inventar
seus contos de fadas sem perturbações externas, uma vez que “estragava tudo”
pensar que alguém a estivesse escutando. Instantes depois dessa declaração,
contudo, a garota não se eximiu de expor à nova coleguinha diversas fantasias
por ela previamente concebidas, comportamento que, no decorrer da trama,
repetir-se-ia e devotar-se-ia a grupos de ouvintes cada vez mais amplos. Com
base nesse quadro, poder-se-ia argumentar que, embora preferisse conceber a sós
seus “faz de conta”, a Srta. Crewe gostava de transmiti-los a outros, desde que
já estivessem concluídos. Muitas das cenas em que se dedicava a encantar o
colégio com os voos da imaginação explicitam, porém, sua habilidade peculiar e
sua inclinação especial para a criação espontânea e pública de histórias
fantásticas. Constata-se, por conseguinte, uma contradição na abordagem de um
dos traços mais relevantes da personalidade da figura central do romance.
Outra incoerência proeminente no
desenvolvimento de um personagem estabelece-se com relação à caçula da escola
de Srta. Minchin, tratada como se fosse uma eterna criancinha de quatro anos de
idade, ainda que seis anos tivessem transcorrido do início ao fim do enredo.
Muito bem exemplifica essa questão o episódio da trágica festa do décimo
primeiro aniversário de Sara, quando se comentou que uma suntuosa boneca
ganhada pela menina era quase do tamanho de Lottie Legh, que já contava, então,
com sete anos de idade. Há, ainda, o caso de Ram Dass, criado indiano do
ex-companheiro do pai da protagonista, que, ao conversar com esta, pela
primeira vez, alegrara-se por saber que a garota era fluente em hindustâni, a
única língua que ele falava. Foi estranho, pois, deparar-se mais tarde com a
cena em que tal servo comunicava-se perfeitamente bem com Becky, uma das
empregadas do educandário, que certamente não conhecia outro idioma, salvo o
inglês.
Nenhuma das caracterizações
incompetentes de A Princesinha,
todavia, irrita mais do que a composição da personagem central, que, apesar de
ser, excetuando-se, é claro, o episódio supracitado, adequada à lógica interna
da obra, devido a sua base romântica, pouco corresponde à lógica que lhe é
externa, isto é, o mundo real. Sara revela-se, com efeito, agraciada quase
exclusivamente por qualidades positivas, que a fazem não só muito bondosa,
generosa e educada com todos, como também extremamente inteligente – tendo sido
a aluna modelo de disciplinas que iam de Dança a Francês – e profundamente
sensata – tendo se mantido tranquila e ponderada em situações que seriam
insuportáveis para qualquer criança de carne e osso. Poucos foram os momentos
em que a garota exibiu perda de controle, que ela recuperou, sem dúvida, de
forma tão rápida e tão equilibrada que pareceu afetada, sem equivalência alguma
com a realidade. Em outras palavras, como diria Jane Austen, “retratos de
perfeição deixam-me má e doente”.
Segundo a mesma linha de
incoerência frente à vida real, institui-se grande parte da ação do romance,
quando, pautada pelo melodrama, típico do Romantismo, vale-se dos infortúnios
da protagonista em meio à pobreza para afirmar a integridade de seus princípios
e a firmeza de seu caráter. Embora o artifício da miséria, tal e qual a
natureza quase divina da “Princesa Sara”, integra a lógica interior da narrativa,
o fato de seu fundamento não ser verídico – visto que, como se diz, conhece-se
alguém somente quando se lhe dá poder
-, torna-o piegas e enfadonho, além de pouco crível com relação à própria Sara,
que, mesmo em seus áureos tempos, já era boa e generosa com todo mundo.
Todavia, compromete-se, de fato, tanto o mundo não fictício como o criado por
Burnett, na ocasião em que, durante uma conversa entre o velho amigo do Capitão
Crewe e seu advogado, ambos inadvertidamente ignoraram a ideia de que era, no
mínimo, estranho haver, na casa ao lado, uma criança que, apesar de desprovida
de recursos e de acesso à educação, mostrava-se polida e culta feito uma jovem
dama da sociedade. Embora o desfecho da trama permita compreender que esse
cenário assim se concebeu a fim de que, afinal, pudessem estabelecer-se certas
coincidências como pretexto para unir o cavalheiro indiano à menina que ele
sonhava encontrar, a presença de tamanha inverossimilhança na obra não só
diminui seu valor literário, mas também afronta a inteligência do leitor,
independente de sua idade.
Ainda que se proponha como lição de bom senso e de compaixão, esta ressaltada sobretudo na cena em que, faminta, Sara não se abstém de compartilhar seu alimento com uma mendiga, e aquela destacada nas situações em que a garota mantém-se calma e educada ante os maus-tratos da Srta. Minchin, conclui-se, de acordo com o panorama acima discutido, ser A Princesinha mais repleto de defeitos do que de virtudes. Portanto, se o que se deseja relaciona-se à aprendizagem ou ao aprimoramento das qualidades exaltadas no livro, pode-se, a não ser que os elementos românticos sejam verdadeiramente apreciados, substituir sua leitura pela de uma obra de teor mais realista e, por isso, mais condizente com a vida do dia a dia. Jane Austen, nesse sentido, seria, de novo, uma boa conselheira, principalmente com seu Razão e Sensibilidade.
Oi, Karen! Adorei o seu blog e suas resenhas, adicionei A Princesinha em minha lista.
ResponderExcluirAbraço ♥
Oi, Karyne! Tudo bem?
ExcluirFico muito contente por ter gostado do conteúdo de meu blog! Sinta-se à vontade para visitar a página sempre que desejar.
Um abraço!
gostei muito da contextualização histórica e análise do enredo, não sei se vc continua alimentando o Blog, mas ele foi muito útil em minhas pesquisas, brigada querida!
ResponderExcluirOi, Rebeca! Tudo bem?
ExcluirQue bom que gostou de minha resenha sobre A Princesinha! 😊 A respeito do blog, eu ainda o atualizo, tendo feito ontem minha última postagem. Fique à vontade para aparecer por aqui sempre que desejar.
Um abraço!