Sempre tive curiosidade de acompanhar Roque Santeiro (1985), em razão do fato de ser a telenovela de maior audiência da história da televisão brasileira. A oportunidade surgiu em novembro do ano passado, quando o canal Viva (agora Globoplay Novelas) começou a reprisá-la pela segunda vez, visto que já o tinha feito entre 2011 e 2012, época em que eu fazia faculdade e não tinha tempo para assistir aos folhetins antigos da referida emissora, que sempre os apresentava em horários pouco cômodos. Confesso que, antes de começar a ver a novela, sabendo que, apesar de seu argumento e de vários de seus capítulos terem sido escritos por Dias Gomes, ela havia sido conduzida sobretudo por Aguinaldo Silva, temi que não fosse gostar de seu enredo, justamente por nunca ter apreciado muito as tramas do derradeiro autor citado. Na última sexta-feira, depois de haver concluído os 209 capítulos da obra em questão, percebi que, de certo modo, eu não estava absolutamente equivocada em minha suspeita.
O núcleo central de Roque Santeiro, que envolve o segredo em torno do personagem que dá nome à novela, evidencia-se, assim que começa a desenvolver-se, pouco antes do capítulo 30, original, instigante e bem-engendrado. Roque Santeiro (José Wilker), o homem que todos pensavam que havia sido assassinado dezessete anos antes do início da trama pelo bandido Navalhada em frente à igreja matriz da cidade de Asa Branca, estava, na verdade, vivo, o que, mediante seu retorno à terra natal, foi comunicado às figuras mais poderosas da região, a saber, o fazendeiro Sinhozinho Malta (Lima Duarte), sua noiva, a Viúva Porcina (Regina Duarte), o padre Hipólito (Paulo Gracindo) e o prefeito Florindo Abelha, mais conhecido como seu Flô (Ary Fontoura). Houve, entre os indivíduos do grupo citado, espanto e apreensão diante do fato com que se depararam, porque todos julgavam que o santeiro em questão fosse não só um mártir que havia morrido para salvar Asa Branca, mas também um santo que tinha realizado inúmeros milagres desde os primeiros tempos após seu falecimento, de maneira que toda a cidade havia, desde então, crescido e prosperado graças a sua figura. Esta, no entanto, correspondia, na realidade, à de um ladrão, que tinha roubado o dinheiro que Malta havia lhe dado a fim de cobrir a exigência de Navalhada para abandonar, com sua quadrilha, Asa Branca e o ostensório da igreja matriz, tendo, com os frutos de seus furtos, fugido para a Europa, onde permanecera durante o período de sua ausência. Panorama mais chocante não podia haver!
Diversas reuniões destinadas a resolver o futuro do mito de Roque Santeiro passaram a ser empreendidas entre o falso santo e os mandachuvas da cidade, sem que se encontrasse uma solução que agradasse à totalidade das partes envolvidas: enquanto Sinhozinho, Porcina e seu Flô desejavam a partida de Roque, este e padre Hipólito eram favoráveis à revelação da verdade, independente das consequências que dela pudessem se originar, como a extinção da economia e do prestígio de Asa Branca. A propósito, mesmo antes do reaparecimento do santeiro na cidade, o padre sempre se posicionara contra o mito criado, postura que se agravou, assim que soube que Roque estava vivo, tendo até, num determinado episódio, estabelecido como condição para casar Porcina e Malta que eles revelassem a verdade ao povo acerca do falso milagreiro, algo que, não tendo sido acatado, provocou uma ameaça do vigário contra o casal em questão. Por que, por conseguinte, o personagem de Paulo Gracindo invariavelmente era considerado por todos como alguém que se eximia de posicionar-se com respeito à pauta em torno de Roque eu nunca compreendi. Só porque o padre era ponderado ao abordar o assunto e atribuía àqueles que, de fato, estavam envolvidos no problema a resolução deste não significava que ele não se interessasse pelo empecilho. Afinal, como religioso, Hipólito agia conforme lhe destinava sua função, ao contrário do padre Albano (vivido por Cláudio Cavalcanti), o qual, embora fosse um homem genuinamente bom e preocupado com os pobres, parecia mais um sindicalista toda vez que aparecia pregando em sua igreja do que um eclesiástico. Sempre me incomodou, portanto, a interpretação que se fez do papel de Hipólito, que só começou a realmente comportar-se como se desejasse "lavar as mãos" a partir da reunião de que preferiu se isentar no capítulo 150, quando os mandachuvas de Asa Branca encomendaram a morte de Roque, demonstrando os autores do folhetim que estavam querendo encaixar o perfil do vigário na ideia que tentavam passar aos telespectadores desde o começo da trama. De todo modo, o fato é que as discussões iniciais em torno do mito, rapidamente transformadas em embates entre Roque e Sinhozinho Malta, apresentavam-se articuladas e bem-humoradas, graças ao deboche típico da personalidade do santeiro, tendo, entretanto, posteriormente se tornado um tanto repetitivas e, em alguns casos, até desnecessárias.
A bem da verdade, a novela Roque Santeiro possui várias situações dispensáveis ou até insustentáveis. Um exemplo é o envolvimento amoroso que se estabeleceu entre Roque e Porcina – ainda que esta, ao contrário do que o povo asabranquense pensava, não fosse viúva do falso milagreiro, pois sequer o havia conhecido dezessete anos antes –, uma das subtramas da novela que menos me agradaram e que, entretanto, estendeu-se durante a maior parte do folhetim. Sem dúvida, embora pudesse haver uma forte atração física entre os dois personagens citados, não existia qualquer afinidade de temperamento ou de intelecto entre eles, pois, ao passo que Roque era calmo, culto e viajado, Porcina era escandalosa, semianalfabeta e tacanha (essência que, por sinal, ela jamais perdeu, tendo somente adotado, com o passar do tempo, uma mentalidade um pouco menos atrelada à necessidade de ser dependente de um homem, como era com relação a Sinhozinho), algo que, na vida real, dificilmente faria o amor brotar tampouco florescer entre um homem e uma mulher. Parece, contudo, que Aguinaldo Silva confundia amor com paixão, já que, na novela Pedra sobre Pedra (1992), também havia casais cujas relações, ainda que tivessem durado até o fim da trama, revelavam-se substancialmente pautadas pelo encantamento e pelo desejo. Além desse aspecto em torno de Roque e da "viúva que foi sem nunca ter sido", sempre me incomodou muito o profundo desprezo com que Porcina invariavelmente tratava Mocinha, a filha de seu Flô, interpretada pela suave Lucinha Lins, que, de fato, tinha se envolvido com o santeiro no passado, a ponto de até mesmo ter com ele noivado, coisa que, contudo, a personagem de Regina Duarte refutava de modo veemente. Ela ousava fazer isso inclusive diante de quem conhecia toda a verdade, enquanto tratava, com desdém e com crueldade, a antiga companheira de seu amante, como se a moça, já naturalmente desequilibrada, merecesse comer o pão que o diabo amassou. Exagerada e ridícula revelava-se a postura de Porcina, agravada pelo fato de que Roque mal se manifestava para defender a ex-noiva, numa atitude inverossímil, transformando-se, nessas ocasiões, num perfeito "banana".
A "viúva" merecia, com efeito, fazer par com Chico Malta, pois tinha os mesmos valores baixos e deturpados e a mesma falta de educação que ele expressava, conquanto não fosse, a exemplo do referido personagem, uma assassina nem alguém que compactuasse com a ideia de tirar a vida de um ser humano. Acerca das atrocidades cometidas por Sinhozinho, senti-me um tanto revoltada ao constatar, afinal, que ele não foi condenado como mandante da execução do doutor Cazuza (Lutero Luiz) e que seus comparsas foram igualmente poupados de sofrerem as consequências de seus atos, sem mencionar que as mortes de Odete e de João Ligeiro – vividos, de modo simultâneo, por Ângela Leal e por Maurício Mattar – não foram nem devidamente averiguadas pelas autoridades, caindo, pois, no esquecimento. Entendo as ideias de corrupção e de impunidade que Dias Gomes e Aguinaldo Silva tencionaram veicular na novela como norteadoras irremediáveis da cultura no Brasil, porém desejava que, de algum modo, os criminosos de Roque Santeiro pagassem por seus atos. Por outro lado, o desfecho que coube a Zé das Medalhas (Armando Bógus), homem que subjugava e agredia a própria mulher e que ambicionava se tornar, cada vez mais, rico e poderoso, veio muito a calhar, fazendo jus a todos os males praticados, no decorrer do folhetim, pelo referido personagem.
Outra pessoa que terminou a novela de forma interessante, mesmo que em circunstâncias totalmente distintas daquelas em que se viu inserido Zé das Medalhas, foi Rosaly, uma das moças da boate Sexus, que deixou de ser dançarina para ir embora com o charmoso coronel Emerenciano Castor, numa breve, entretanto, marcante participação de Tarcísio Meira em Roque Santeiro. A moça realmente "se deu bem"! Todavia, a boate mencionada, de que a personagem fez parte, ao longo da trama, ao lado de Ninon, de Matilde e de Amparito (representadas, de modo respectivo, por Cláudia Raia, por Yoná Magalhães e por Nélia Paula), apesar de ter tido alguma função no começo da novela, não demorou a perder o propósito, tornando-se repetitivas e enfadonhas as cenas da casa noturna. Aliás, considero muito superficial o papel de Yoná Magalhães nesse núcleo, dada a importância da atriz, que estranhamente passou a maior parte do folhetim desprovida de uma forte história própria, tendo até mesmo sua ligação doentia com o pérfido Ronaldo César (Othon Bastos) sido pouco vultosa. Ninguém da subtrama em pauta, contudo, foi menos aproveitado do que Nélia Paula, a Amparito Hernández, ex-vedete que tinha o objetivo de vingar-se de seu Flô, uma frustrada paixão da mocidade, sem que, no fim das contas, concretizasse seu plano, que pareceu ter sido esquecido nos últimos tempos da novela, vindo a culminar com o quase sumiço de Amparito.
Personagens também pouco proveitosos revelaram-se os do núcleo do cinema. No começo da novela, as filmagens do longa-metragem A Saga de Roque Santeiro tinham a função de narrar com detalhes para os telespectadores do folhetim a história em torno do mito de Roque; após algumas dezenas de capítulos, contudo, já não se verificava esse objetivo, que deu lugar a uma série de episódios dispensáveis com os personagens da subtrama em questão, que só apareciam gravando cenas com incontáveis tomadas conduzidas pelo inseguro e enjoado diretor Gérson do Valle (bem interpretado por Ewerton de Castro) ou vivenciando o muito mal engendrado triângulo amoroso entre Gérson, a atriz Linda Bastos (Patricia Pillar) e o marido desta, Tito (Luiz Armando Queiroz). Se a intenção era tornar engraçado o núcleo em pauta, isso certamente não foi bem-sucedido. A exceção à regra foram as múltiplas peripécias amorosas do ator Roberto Mathias, um mulherengo inveterado que se insinuava para todos os indivíduos do sexo feminino que cruzavam seu caminho, a quem deu vida Fábio Júnior, que provavelmente representou o melhor papel de sua carreira.
Encontra-se nesse aspecto, a propósito, um dos pontos altos da novela como um todo: o bom humor. Eu, particularmente, sempre valorizei muito enredos dotados de comicidade, sejam eles oriundos de folhetins, sejam eles provenientes de livros, sejam eles concernentes a filmes. Sem dúvida, pude dar boas risadas enquanto assistia à trama, cujas figuras mais engraçadas para mim sempre foram, apesar das características que reprovo nelas e que expus acima, o cacofônico Sinhozinho Malta e a extravagante Viúva Porcina, que, com certeza, garantiram a seus intérpretes, Lima Duarte e Regina Duarte, respectivamente, seus trabalhos mais marcantes na TV. Também me divertia com os discursos empolados, acompanhados de uma dramática linguagem corporal, que expressava o professor Astromar Junqueira, encarnado por Rui Resende, o verdadeiro lobisomem da trama – apesar de não gostar desse toque de realismo fantástico imprimido à novela, o qual, por sinal, foi, por muito tempo, esquecido, até que se lembraram de retomá-lo no desfecho da enredo.
Apresenta-se Roque Santeiro, em resumo, como um folhetim que eu não qualificaria como excelente, ao contrário do que o público, dada sua fenomenal audiência em 1985, considerou. É evidente, contudo, que sua trama, não obstante as falhas que apontei e os desagrados que me causou, é uma ótima crítica à religiosidade cega, à exploração da fé, à hipocrisia, à ganância, à corrupção e à impunidade, fatores inerentes ao meio social brasileiro (daí, provavelmente, o grande apego dos telespectadores à novela e sua identificação, com certeza, velada com ela), além de ser um trabalho enriquecido por um elenco de nível excepcional, que hoje não se vê mais nos folhetins da Globo. Enfim, conferir essa obra de Dias Gomes e de Aguinaldo Silva, bem como o esplendor das atuações de Lima Duarte, de Regina Duarte, de José Wilker, de Ary Fontoura, de Armando Bógus, de Paulo Gracindo e de Eloísa Mafalda, dentre outros grandes nomes, valeu, sem dúvida, a pena.
– Karen Monteiro
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