Seria hoje, dia 31 de dezembro, o aniversário da cantora, compositora e escritora Rita Lee, a quem dedico esta postagem, na qual conto minha história com ela e resenho suas duas autobiografias, em especial a primeira.
Desde criança, admiro certas personalidades famosas, embora deva admitir que são raríssimas aquelas pelas quais nutro, de fato, carinho, algo que faz com que eu desejasse tê-las conhecido e até estabelecido com elas amizade. Sim, "tê-las conhecido", e não "conhecê-las", pois nenhuma das pessoas que estimo, de maneira especial, ainda se acha viva. Uma delas é a escritora inglesa Jane Austen, que viveu há mais de 200 anos, de modo que jamais poderia ter travado qualquer contato com sua pessoa, enquanto a outra é a cantora e compositora brasileira Rita Lee, que, apesar de haver falecido há somente pouco mais de um ano e meio, não chamava minha atenção na época em que estava na ativa, coisa que hoje lamento, mesmo que saiba que não tive, com efeito, "culpa no cartório" com respeito a isso.
Nasci em novembro de 1989, quando Rita Lee ainda era muito popular entre indivíduos das mais diversas faixas etárias, embora o auge de sua carreira tivesse passado havia alguns anos. Curiosamente, quando, entre 1990 e 1991, a Globo exibiu a novela Lua Cheia de Amor, cujo tema de abertura era "La Miranda", de Rita Lee e Roberto de Carvalho, eu, que era então um bebê, sempre me empolgava, de acordo com minha mãe, ao ouvir a referida música, que me atraía, independente do cômodo da casa em que eu estivesse, para a frente da TV, onde me punha a dançar com grande animação. Contudo, até começar a me entender por gente e a me interessar por música, entre 1996 e 1997, o apelo que a artista em outros tempos exercia em meio às crianças já não se verificava, então eu, que sequer tinha uma família que possuísse um interesse particular por seu trabalho, ainda que minha mãe o ouvisse, o visse e o curtisse no rádio e na TV, durante as décadas de 70 e de 80, quando vivenciou, respectivamente, sua infância e sua adolescência, nem tomei conhecimento da existência de Rita. Mesmo que, em algum momento, eu possa ter me deparado com seu nome e com sua figura em um ou outro programa de televisão, só me lembro de haver prestado certa atenção na cantora em 2001, época em que eu, aos 11 anos de idade, vi de relance na TV um trecho de um show no qual ela se apresentava, trajando uma fantasia supercolorida de cobra, com a música "Erva Venenosa".
Aqueles que regulam comigo sabem que os que foram crianças nos anos 90 escutavam, além das músicas das apresentadoras infantis, como Eliana e Xuxa, as da novela Chiquititas (1997-2001) e as de bandas tais como Mamonas Assassinas e É O Tchan. Eu, influenciada pelas amiguinhas da escola e pela mídia, não escapei a essa regra, tendo apenas incluído, entre meus gostos, Madonna, que ouvia com frequência em casa, porque minha mãe era sua fã (sem mencionar que ela também adorava rock, como Ozzy Osbourne e Queensrÿche, gênero que, no entanto, ainda não me atraía). No decorrer da adolescência, já com mais personalidade própria e, sem dúvida, mais bom gosto, não me deixava guiar pelo que os meios midiáticos enfocavam, embora, em razão de sérios problemas pessoais que me sobrevieram na época, não tivesse vontade de ouvir o que quer que fosse.
Tornei-me fã apaixonada do ABBA aos 18 anos de idade e, nos anos subsequentes, fora o som do grupo sueco, gostava do de bandas como o Queen, o Chicago e o Roupa Nova. Recordo-me de que, quando foi exibido o remake da novela Tititi (2010), achei inteligente, divertida e criativa a letra de seu tema de abertura, também chamado "Tititi", porém, devido ao fato de terem erroneamente me informado de que Rita Lee, que o cantava, havia feito um cover da música do Metrô, não associei os geniais versos que escutava à referida cantora. Esse seria, a bem da verdade, o primeiro de uma série de desencontros que eu teria, ao longo da década de 2010, com minha futura artista preferida. Curiosamente, quase todos se relacionaram a temas de novelas. Em 2014, ao assistir à reprise de Dancin' Days (1978) pelo canal Viva, curti a mensagem mais atual do que nunca de "Agora é moda", presente na trilha sonora nacional do folhetim, mas, não sei por quê, não tive curiosidade em conhecer outras músicas de Rita; quatro anos mais tarde, na ocasião em que o mesmo canal levou ao ar Baila comigo (1981), embora tenha conferido na íntegra e apreciado muito a versão instrumental de "Baila comigo", feita para a abertura da trama, nem me interessei em escutar a canção original; por sua vez, em 2020, quando o Viva exibiu Brega & Chique (1987), novela em que tocava à exaustão boa parte de "Pega rapaz", apesar de ter achado singular a letra sensual e rica e sofisticada a melodia da composição, não me prestei a procurar ouvi-la inteira, algo que considero absurdo, porque, sempre que me encanto com um trecho de uma música, eu me apresso a conhecê-la toda.
O mais estranho de todos os desencontros que tive com Rita, todavia, ocorreu cerca de dois ou três meses antes de sua morte, numa noite em que conferia no YouTube algumas canções de diferentes cantores nacionais. Num dado momento, me vi diante de um vídeo com a gravação de estúdio de "Lança perfume", cujos primeiros quinze segundos, mais ou menos, escutei e achei melancolicamente belíssimos até que alguma coisa (que não foi propriamente uma voz, mas que se aproximou disso) me mandou parar de ouvir aquilo, fazendo com que eu não só interrompesse a execução do player, como também que olhasse, com certa raiva, para o rosto de Rita na capa do disco de 1980, que ilustrava o áudio. Sim, sei que parece loucura, porém foi o que aconteceu comigo, embora eu não sofresse de qualquer problema mental, levando-me hoje a crer que uma espécie de força sobrenatural tenha agido sobre mim. Assim que Rita faleceu, em 08 de maio de 2023, foi como se um encanto se quebrasse: "Pega rapaz", que eu não ouvia desde a exibição de Brega & Chique pelo Viva, começou a "tocar" em minha cabeça, na qual se manteve por uns três dias seguidos, coisa que penso ter contribuído para que, pela primeira vez na vida, eu realmente prestasse atenção na pessoa que a cantava. Aquilo que mais me cativou, entretanto, foi uma postagem que fizeram num grupo do Facebook com uma série de comerciais de 1990 da Mesbla, em que Rita interpretava com maestria diferentes tipos de professores. Nas semanas que se seguiram, desbravei tanto os hits da artista como suas músicas mais desconhecidas, fascinando-me sobretudo pela fase de sua carreira com seu amado e talentosíssimo Roberto de Carvalho.
Após explorar o universo de Rita Lee por meio de clipes musicais, de apresentações em programas televisivos e de entrevistas para revistas, jornais e TV, sem mencionar opiniões e discussões de fãs na internet acerca das composições e da vida da artista, resolvi ler a elogiada Rita Lee: uma autobiografia, sem imaginar, mesmo já sendo admiradora de sua autora, que se tornaria minha biografia predileta. A mulher que mais vendeu discos no Brasil era habilidosa não somente como compositora e cantora, mas também como escritora, oferecendo ao público leitor um texto dotado de linguagem despojada e de viés franco, bem-humorado e perspicaz. Rita debruça-se consideravelmente sobre suas memórias de infância, que estão entre as mais bem narradas e divertidas do livro, sendo interessante notar que ela se dedica mais a contar as vivências da família como um todo – tais quais as férias em Rio Claro e no Guarujá e as reuniões de campo em Americana – e mesmo as de alguns de seus membros – a exemplo da história abordando a crise existencial que seu pai sofreu depois da perda do primo Cícero e do episódio envolvendo o encontro de sua irmã Virgínia com dona Anunciata – do que suas experiências individuais. Na verdade, estas, quando são descortinadas, quase sempre se pautam por eventos traumáticos, como a agressão sexual sofrida na primeira infância, o vexame passado numa audição de piano, o desgosto profundo sentido na ocasião do corte abrupto de seu longo e belo cabelo e a incompreensão injusta vivida numa desastrosa visita a uma tia, situações que, combinadas umas às outras, levaram a pequena futura roqueira a revoltar-se contra o mundo a sua volta.
Rita deixa claro no texto que sua família (salvo, até certo ponto, Balú, sua madrinha) não a compreendia e, por consequência, não lhe oferecia apoio quando ela mais precisava disso. Sua mãe e seu pai eram, sem dúvida, pessoas bem-intencionadas, mas, enquanto a primeira impunha um catolicismo desusado às três filhas, o segundo as induzia a realizar trabalhos domésticos em troca de qualquer coisa que quisessem, como um simples sorvete. Eu mesma concordo plenamente com o estímulo de crianças e adolescentes na execução de tarefas de casa, porém, se até seus menores desejos são convertidos em moeda de troca, perde-se totalmente a liberdade. Em sua adolescência, seu pai, Charles, tornou-se menos radicalmente rígido com respeito à música, que cerceava em seu lar, conduzindo a segui-la de vez a caçula, que já integrava, a essa altura, uma banda feminina. Ainda assim, nenhum dos progenitores de Rita desejava que ela pertencesse ao ramo musical, de forma que seus primeiros anos nos Mutantes foram vistos como mero passatempo por Charles e Chesa. Só a intercessão do gentil Gilberto Gil fez com que a mentalidade do casal mudasse, podendo, pois, sua filha mais nova mergulhar por completo na carreira de cantora e compositora.
Rita descreve a fase que passou com os "Mutas", ao lado de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, com riqueza de detalhes e notável consideração, sendo breve apenas com relação ao período que claramente corresponde a seus dois últimos anos no grupo, quando o convívio e o trabalho com os outros membros já não tinham o brilho de outrora. Ela expõe como foi expulsa da banda e o modo pelo qual reagiu a isso, havendo até certo toque de bom humor em sua abordagem. Na verdade, não é raro a artista adotar um tom engraçado e mesmo irônico quanto a alguns dos momentos mais difíceis de sua vida, a exemplo de dadas anedotas sobre sua injusta prisão em 1976 e sobre o agravamento nos primeiros anos da década de 90 do alcoolismo que desenvolveu na segunda metade dos anos 80, após a perda da mãe. Depois de narrar uma curta, contudo, turbulenta época de excessos com drogas, claramente decorrente de seu inconformismo pela saída dos Mutantes, e a formação frustrada de um conjunto ao lado de Lúcia Turnbull, Rita dedica-se a explorar sua fase com o Tutti Frutti, grupo com o qual, apesar de ter gravado o excelente disco Fruto proibido (1975), teve inúmeras dores de cabeça, devido a motins, autorias de composições usurpadas e alheamento social provocado por sua empresária, entre outros.
O encontro de Rita com Roberto de Carvalho foi, em todos os sentidos, um divisor de águas em sua existência. O homem de sua vida, além de fazê-la descobrir, de fato, o amor e o sexo, de lhe dar três filhos – carinhosamente apelidados de Beto, Juca e Tui – e de apoiá-la em períodos complicados, permitiu, conforme ela mesma aponta na biografia, que seus horizontes musicais se expandissem, por meio da exploração de gêneros variados, como o pop, o disco, a bossa-nova e o bolero. A trajetória profissional com Roberto revelou-se não só a mais duradoura da atuação de Rita como cantora e compositora, mas ainda a mais rica de todo o seu repertório. Eu, particularmente, adoro os discos gravados entre 1979 e 1990 (sim, diferente de dona Rita e de muita gente, acho ótimos os álbuns Zona Zen e Perto do fogo), em especial o Saúde (1981), o Rita Lee e Roberto de Carvalho (1982, mais conhecido como Flagra), o Rita e Roberto (1985) e o Flerte fatal (1987). O Santa Rita de Sampa, lançado já em 1997, após um hiato de sete anos na parceria do casal em trabalhos de estúdio, é outro que considero um primor. É pertinente observar, inclusive, que, fora as partes devotadas a rememorar a infância e a adolescência, a expor sua prisão em 1976 e a relatar seus problemas com vícios – cujos agentes que mais lhe causaram danos e internações, ao contrário do que muitos pensam, foram as drogas lícitas, no caso, os remédios controlados e o álcool –, Rita pouco comenta no livro acerca de questões pessoais, focando-se, como boa capricorniana, na carreira. Gostaria que tivesse esmiuçado melhor sua relação com Roberto, que admiro muito, pois ela só o faz, com mais frequência, até a época marcada pelo disco Saúde e, quando o faz, isso em geral se vincula à composição de faixas de temática amorosa-sexual, como "Lança perfume" e "Banho de espuma".
Chama a atenção, ao longo de toda a narrativa, a consistência de Rita com respeito a seus sentimentos, a suas ideias e a suas histórias, uma vez que são os mesmos que ela abordava nas entrevistas concedidas durante seus anos na ativa. O relato da artista apresenta-se bem elaborado e simpático do início ao fim, sendo uma leitura que todos que a admiram deveriam realizar. A propósito, também deveriam todos conhecer o segundo livro de memórias da artista, Rita Lee: outra autobiografia, exclusivamente focado nos tempos finais da vida de Rita, quando, a partir da descoberta de um câncer no pulmão esquerdo, seu cotidiano tornou-se devotado ao enfrentamento desse mal e pouco depois ao combate de outros tumores que surgiram em seu corpo, isto é, pontos cancerígenos na bacia e no cérebro, além de um nódulo abaixo da costela direita e de seus derivados. A abordagem de tal período sombrio e incerto é, o tempo todo, marcada por notável franqueza, por grato reconhecimento do zelo da família e do trabalho dos profissionais da saúde, por divertidas pitadas de bom humor e por imensa fé em Deus e nas "Dimensões" ou "Plano de Luz", como a autora do livro se refere ao elevado mundo espiritual. Enfim, mais uma leitura imperdível acerca de uma pessoa inesquecível. Hoje eu consigo compreender por que sofri tantos desencontros com Rita antes de sua partida: se a tivesse conhecido em vida, estou certa de que a dor por sua perda teria sido horrível, então, de certo modo, devo ter sido poupada.
– Karen Monteiro
Comentários
Postar um comentário