Resenha - A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos

Tatipirun, o País das Maravilhas nacional




Raimundo é um menino extremamente solitário. Embora, em seu nome, caiba o mundo, não há, em seu cotidiano, espaço algum para a amizade. Suas peculiares características físicas, representadas pela calvície e pelos olhos coloridos  o direito, preto, e o esquerdo, azul  fazem-no, na cidade onde vive, estranho às demais crianças, que por ele nutrem total repulsa, a ponto de esconderem-se do pequeno e de apelidarem-no, de forma maldosa, de “Pelado”. Apesar de não só aceitar a infame alcunha, como também de adotá-la, autointitulando-se “Raimundo Pelado”, o aparente comodismo rotineiro do garoto somente camufla o profundo sentimento de rejeição que, dia a dia, cresce em seu íntimo. A fuga para outra terra, instituída segundo paradigmas totalmente diversos daqueles predominantes em sua localidade natal, torna-se, afinal, o sol no horizonte vislumbrado pelo sofrido menino.

Assim que se lhe descortina o mundo mágico de Tatipirun  fruto exclusivo de sua pródiga imaginação , Raimundo depara-se com um singular e, sobretudo, instigante panorama. Diante de si, concretiza-se o que, até então, ele considerava inimaginável. A ausência de noite e de chuva e a invariabilidade do clima, sempre ameno e agradável, não demoram a chamar-lhe a atenção, em meio a uma natureza repleta de simpáticos vegetais e animais, que jamais se cansam de conversar com os humanos, à sua volta. Fascinante aos seus olhos denota-se, também, o caráter compassivo de tal ambiente, que, frente às necessidades das pessoas que nele vivem, reorganiza suas estruturas do modo devido  como quando um rio fecha-se, a fim de que por ele alguém passe, sem se sujeitar a quaisquer riscos. O que, todavia, mais assombra e, ao mesmo tempo, enleva a alma do jovem desbravador manifesta-se pelos habitantes de Tatipirun, todos crianças dotadas dos incomuns atributos físicos detidos pelo forasteiro, conquanto sejam muito distintas, umas das outras, no que se refere a personalidade. 

Inteiramente concebida, em 1937, pelo escritor alagoano Graciliano Ramos  pertencente à Segunda Geração do Modernismo brasileiro , e agraciada, no mesmo ano, com o Prêmio de Literatura Infantil do Ministério da Educação e Cultura, a novela A terra dos meninos pelados não deve ser entendida como um ensaio representativo do escapismo, mas, sim, como um apelo atemporal à igualdade humana, cuja defesa mais eficaz pode alardear-se justo entre os integrantes do público-alvo mais plausível da trama, isto é, as crianças. Guiar-se, porém, pela suposição de que a obra pauta-se por metáforas simplistas, cujo teor só agradaria, pois, aos leitores mais jovens, evidencia-se como uma interpretação equivocada da crítica proposta por Graciliano, invariavelmente dúbio em suas concepções. Com efeito, ainda que se conduza a novela mediante uma forma instituída por uma linguagem menos diversificada, em termos de léxico, do que a empregada num romance tal qual Vidas Secas  apesar de igualmente firmada por substantivos na exposição de ideias, visto que, para o autor, "A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer" , podem-se depreender variados significados de seu enredo, dependendo de quem e de como se lê.

Publicado às vésperas da instauração do Estado Novo ditadura que permitiu, por um lado, a consolidação do caráter nacionalista e populista de Getúlio Vargas, por meio da maciça industrialização do Brasil e da consequente criação de empregos, e, por outro, a concentração, quase absoluta, dos poderes Executivo e Legislativo nas mãos do presidente, que cerceava, pois, as liberdades cultural e ideológica da população , A terra dos meninos pelados pode ter sido compreendido, em sua época, como uma crítica sutil à crescente censura que, então, vivenciava a liberdade de expressão do brasileiro, a cada dia mais subordinado aos padrões de conduta defendidos pelo Governo, que, contrariado, reprimia todo cidadão “incorreto” como a um criminoso. Nessa acepção, deve ter sido entendida a terra mágica de Tatipirun tal qual uma alegoria para representar a sociedade tolerante, respeitosa e igualitária que a nação deveria criar, combatendo, assim, qualquer tentativa de manipulação do pensamento e dos ideais humanos pelo Estado.

Embora não se tenham manifestado bem-sucedidas as tentativas de diversos intelectuais de refrear o avanço da política de Vargas pelo país, a contribuição de Graciliano Ramos, mediante a novela em questão, para a disseminação da boa-vontade e da cooperação nas relações humanas perdura, até hoje, entre crianças, jovens e adultos, que constituem, de fato, o mais autêntico público-alvo a que o autor da novela dedicou sua trama. Afinal, como se poderia (re)construir uma nação sem noite (medo), chuva (contenda) e variação climática (insegurança), caso não houvesse a mobilização de indivíduos de cada um desses setores, contribuindo com suas experiências de vida e com seu saber de mundo?

– Karen Monteiro
                                                                                                

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