Resenha - Jack & Alice, de Jane Austen

Os primórdios da literatura austeniana

A edição da novela Jack & Alice, de Jane Austen, publicada, em 2014, pela editora Martins Fontes, encanta pela sagacidade das ilustrações da inglesa Andrea Joseph

O sr. e a sra. Austen, ao contrário da maioria dos casais ingleses de posição social respeitável, porém, medíocre, e de condição financeira razoável, contudo, modesta, jamais se eximiram de incitar sua numerosa prole a espelhar-se na postura cotidiana de ambos e a fiar-se nos fermentos culturais do lar, que, entre outros, incluíam a leitura de livros e a encenação de peças, pré-requisitos para que as crianças desenvolvessem o senso crítico, o raciocínio inventivo e a sensibilidade artística. Não há dúvida de que a composição de tal edificativo quadro familiar, em longo prazo, não só moldaria, mas também consolidaria os gostos, as propensões e as personalidades dos indivíduos os quais, sob sua influência, encontravam-se, a exemplo da sensível Cassandra, inclinada a desenho e a pintura, e sobretudo da inteligente Jane, apaixonada por literatura e por música. Demonstraria, no decorrer da adolescência, terem sido, com efeito, recompensadoras as lições de sua esmerada educação domiciliar a caçula do clã dos Austen, que, após haver se munido de preciosos desbravamentos por muitos dos cerca de 500 títulos de diversos gêneros e de distintos autores constantes da biblioteca de seu pai, tencionou arriscar-se ela própria no ofício das letras, elaborando poemas, peças, contos e novelas, subordinados, de forma geral, a um tom satírico e a um teor vivaz, de que comumente se sobressai a faceira narrativa de Jack & Alice.

Mediante a ambientação dessa notável história no minúsculo, pacato e fictício vilarejo de Pammydiddle, povoado por não mais do que dez exemplares dos tipos humanos, das classes sociais e dos patrimônios familiares mais usuais no fascinante meio rural inglês do fim do século XVIII, a menina Jane, apesar de seus então meros 14 anos de idade, esboça, da sociedade em que vivia, um divertido e agudo panorama caricato. Tem-se, assim, o oferecimento de uma galeria de personagens sustentada por estereótipos de temperamento, de caráter e de conduta, cujas manifestações mais gritantes são provavelmente a de Charles Adams – o suprassumo do gentleman ideal –, a de Lady Williams – o pináculo da virtude inabalável – e a de Sukey Simpson – a personificação do mal absoluto –, que não se apresentam, todavia, imunes, por vezes, a ambiguidades, como aquelas em que se verifica o nobilíssimo sr. Adams, dotado de predicados tão supremos que se revela, na única fala substancial que se lhe atribui na novela, presunçoso, esnobe e pedante. Subjaz, por conseguinte, à narrativa de Jack & Alice precocemente perspicaz observação social e análise psicológica da natureza do homem e das dinâmicas dos relacionamentos, o que, ao mesmo tempo que revela o gênio sagaz de sua jovem autora, corrobora o propósito exclusivo que ela evidenciaria, em escritos posteriores e maduros, de explanar, em vez de criticar, o ambiente sociocultural em que se criara e que intimamente compreendia.

Fenômeno pouco corriqueiro institui-se aquele em que, num texto de sua juvenília, um escritor, conquanto se erijam sobre baluartes de acuidade, de coerência, de sensibilidade e de inovação sua obra adulta, expressa considerável habilidade na adoção de um estilo e na orientação de um conteúdo, circunstância que permite à novela em discussão ser alvo de mais entusiasmado apreço e de mais generosos elogios do que, em tese, poder-se-ia supor. A indelével marca deixada pelos exímios e deleitosos trabalhos da literatura universal conhecidos sob os títulos de Razão e Sensibilidade, de Orgulho e Preconceito, de Mansfield Park, de Emma, de A Abadia de Northanger e de Persuasão não se originaria, a bem da verdade, de um intelecto limitado ao senso comum ou ao discernimento superficial, de sorte que se torna compreensível o nato e brilhante talento para a escrita demonstrado em plena meninice por aquela que, em decorrência das composições em prosa supracitadas, elevar-se-ia ao pedestal central da classe dos romancistas de seu país, viabilizando a transformação em sinônimo de jovial humor, de astuta ironia, de fascinante espírito, de ternos sentimentos e de moralizantes ensinamentos seu hoje tão afamado e amado nome: Jane Austen.

– Karen Monteiro  

Comentários