Edição de Persuasão publicada, em 1996, pela extinta editora Francisco Alves
O romance Persuasão, tecido à época em que Jane Austen já desenvolvera a
enfermidade que ceifaria sua vida, arquiteta uma inigualável trama, que, mediante um estilo mais sóbrio e uma conjuntura mais
contemplativa do que aquela que se verifica no restante da obra da autora, propõe, alicerçada ao perene vínculo entre suas figuras centrais, a resignada Anne Elliot e o arrojado Capitão
Frederick Wentworth, temáticas de notável complexidade e de significativa
delicadeza. Entre elas, destacam-se o emprego de persuasão nas relações interpessoais, o
sobrepujamento da classe e do status social aos enlaces ditados por
afeições íntimas, a ausência de amor paternal, a fragilidade de relacionamentos
fraternais, a instabilidade de desencontros amorosos e o fortalecimento de
afetos antigos – elementos que, não por acaso, respaldam-se na indistinta imensidão do horizonte marítimo como pano de fundo da narrativa.
Ainda que a profundidade do tratamento dessas noções, desde que
postumamente se lançou, em 1818, o derradeiro trabalho literário da primeira romancista inglesa moderna, tenha elevado, perante a crítica especializada e uma parcela
representativa do público leitor, o título em questão ao posto de escrito de
maior maturidade da obra austeniana, não se pode negar que, à época de sua
produção, os sentimentos e as concepções daquela que o idealizou achavam-se
influenciados, de maneira preponderante, pela dor da doença e pela perspectiva
da morte iminente. Estes se denotam responsáveis, pois, por conferir à narrativa em questão
certo tom de desconsolo (enfatizado pela insípida vida da acomodada e
obediente personagem central), de amargura (representado pela triste realidade da
empobrecida e calejada sra. Smith) e até de violência (protagonizado pelo
singular episódio do acidente da alegre e inconsequente Louisa Musgrove).
Nesse sentido, os enredos dos demais romances da autora em
foco, com destaque para o de Razão e Sensibilidade, o de Orgulho e
Preconceito e o de Emma, refletem, de modo mais genuíno, a essência
da alma otimista e centrada de sua criadora, comumente devotada à discussão de tópicos tais quais a
desestruturação de preconceitos obstinados, o reconhecimento de defeitos natos ou de falhas recorrentes, a
desmistificação de arraigadas filosofias de vida e a consequente assunção de
novas perspectivas de mundo, a valorização da inteligência e da perspicácia
femininas, o enobrecimento da personalidade própria, a crítica à excessiva
indulgência paterna e sobretudo materna, a valorização de fortes vínculos
fraternais, o aprimoramento de virtudes pré-existentes, a prática da compaixão
cotidiana e o enaltecimento do amor ponderado em detrimento da paixão
irrefletida.
Por sua vez, os trabalhos de menor renome da escritora, a
saber, Mansfield Park e A Abadia de Northanger, conquanto também
propiciem leituras enriquecedoras e prazerosas, pecam na disponibilização de um
leque significativo de personagens de caracteres cativantes – no que não se encaixam, todavia, seus heróis e suas heroínas –, além de falharem no
desenvolvimento de uma gama considerável de situações e de peripécias, de fato,
instigantes. Independente das peculiaridades inerentes à urdidura de cada uma
das tramas austenianas, todavia, deve-se ponderar serem intrínsecos a todo
enredo os princípios relativos ao estabelecimento da contextura de sentimentos,
de ideais, de condutas e de relações interpessoais defendida pela autora, o que
autoriza o leitor sagaz, quando se dedica ao esmiuçamento das significações dos
textos assinados pela mais ilustre figura literária a que, salvo William
Shakespeare, a Inglaterra já deu à luz, a deparar-se com arquétipos invariáveis
e, por conseguinte, com acepções geniais na obra integral de Jane Austen, inclusive, naturalmente, em seu mais solene e mais atípico romance.
– Karen Monteiro
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